Aversão aos problemas

Sobre a vontade humana e como fugir dos problemas é um problema.

por Thales Augusto

“Os problemas, portanto, nos compelem a um estado de soledade e de orfandade absoluta, onde nos sentimos abandonados inclusive pela natureza e onde somos obrigados a nos tornar conscientes.” (Jung)

        Temos o infantil desejo de permanecer afastados dos problemas. Querer que a vida seja estável, sem perturbações ou incertezas. Tal processo não é uma exclusividade da natureza da psique. Se observarmos bem um princípio simples de nosso corpo físico, iremos constatar o mesmo.

        Se trata da gordura corporal. De modo supérfluo, seu mecanismo é simples. O que comemos a mais é convertido em gordura e depositado em algum canto de nosso corpo. É uma reserva de energia fantástica e que pode ser usada, caso necessário, no futuro. A sensação que nosso corpo nos trás com este mecanismo é um desejo por aquele tipo de comida mais rica em energia. O açúcar ocupa o primeiro lugar desta lista. Ao mesmo tempo, o desejo de nosso corpo é permanecer quieto, parado se for preciso. Tudo isso para ter uma alta quantidade de energia estocada: muita energia consumida e pouca gasta. É justamente aqui que o mecanismo da gordura e o desejo psicológico de se afastar dos problemas se tocam.

         De volta à gordura, temos a tendência de seguir tais sensações, ao mesmo tempo que possuímos um perfil cada vez mais sedentário. O que provoca um excesso que ultrapassa o simples depósito de tecido adiposo, a vulga gordura, e passa a sobrecarregar demais órgãos, entupir veias e alterar algum eixo hormonal aqui e outro ali. E tudo isso possibilitado por uma rotina em que um pacote de biscoito tem mais energia e é menos saciável que um pedaço de carne, além de passarmos a maior parte do tempo sentados ou parados. O supra-sumo do desejo corporal, mas que dá a impressão que a gordura é um mecanismo nocivo.

        Ao contrário, faz parte da engenharia divina e contém uma beleza profunda. Pois somos animais projetados para passar dias andando e sem fontes de energia. Como se ambos não fossem suficientes, temos que nos esforçar ainda mais para conseguir obter um pouco a mais de energia. Ao obter a mesma, aquilo que não é usado no momento entra no depósito de energia que será extremamente vital no futuro.

        De tal modo que levanta-se o questionamento: será que da mesma maneira que nosso corpo nos impele a um alto consumo calórico e uma baixa mobilidade, existe algo relativo ao enfrentamento dos problemas que nos indica uma grande evitação?

        Bom, primeiramente teríamos que falar o porquê de fugir dos problemas é um problema. Note que a argumentação central aqui, deste paralelo com o mecanismo da gordura, está naquilo que é contraproducente: o desejo de comer mais e ficar parado nasce de algo magnífico e necessário, mas é o caminho oposto (não se entregar ao desejo) que nos permite permanecer saudáveis. Assim sendo, quando o assunto é evitar problemas não se engane, temos que evitá-los sim. Problemas são opções de rotas de ação mais difíceis. É natural buscarmos a rota menos difícil, o que conserva energia e saúde. Bem como, para a gordura, comer, ter energia e estoque de energia são necessários. Acontece que, do ponto de vista psicológico, há uma intenção gigantesca que nos empurra para uma evitação total, bem como o desejo de comer nos arrasta para a alta calórica e o sedentarismo. Ou seja, se há uma inclinação à tal aversão aos problemas, temos aquelas pessoas que desistem de tudo por conta de um “não” e vivem à sombra do que poderiam ser, até àqueles que não conseguem nem sequer levantar da cama, por apatia total.

        Porém, comparar as duas em si é inoportuno, visto se tratar de grandezas diferentes: gordura (corpo) e psiquê. O ponto, porém, é que nós não somos uma psique fora de um corpo ou um corpo inanimado, sem psique. De modo que parte dos agentes provocadores da sobrevivência humana via gordura são em parte fisiológico e em parte psicológicos. Ambos havendo grandezas manipuláveis e outras (muito mais) que funcionam à revelia de nossa vontade. Nesta altura, se perguntar quem veio primeiro é quase uma tentativa maníaca de ter todas as respostas, enquanto o problema persiste.

        De modo que o próprio percurso do funcionamento da gordura nos dá notícia de uma sequência: o desejo e o consumo. O desejo que nasce de uma necessidade, calçada por mecanismos avançados de trabalho que a sustentam, e impulsionam o ser humano para tal direção. A aceitação ou não do impulso é uma fresta de volição na dinâmica da sobrevivência humana. Seu consumo nos presenteia com dois objetos: o prazer da realização e o despertar do desejo mais forte. É a consagração de que o objeto alvo foi bem sucedido e, entendendo-se que em um futuro incerto pode-se não obtê-lo mais, todo o aparato humano tem que registrar com força maior a urgência de sua repetição.

        O que isso tudo quer dizer? De que satisfazer um desejo o torna mais forte. O que isto tem haver com a gordura? Em uma realidade material onde podemos consumir mais e ficar mais parado, não há nada além da fresta volitiva que vá impossibilitar a evolução sem fronteiras do desejo. É claro que para a gordura, munida de seus aspectos fisiológicos, há mecanismos de contra-balanceamento. Estes atuam em um contexto próspero, para que o organismo não se mate com aquilo que é bom. Mas e para a questão da fuga dos problemas?

        O que lhe falta em aspectos fisiológicos de controle, ganha em aspectos mnemônicos. Nós, em nossa capacidade intelectual, podemos entender esses movimentos, seus alcances e seus resultados. A memória, que registra tais entendimentos, oferece à vontade suas novas cartas de ação. Mas o que podemos fazer com uma psiquê que se abre à ação e opta pela fisiologia? Ou ainda pior, quando abre-se à memória daquilo que é bom e força o fisiológico nesta direção, independente do mal-estar corporal?

        Chegamos à um ponto final: a vontade. Podemos muito pouco e a nossa capacidade de ação volitiva reside única e exclusivamente nessa tal fresta. Treinar a opção do “não” para o caso da gordura, quando nos é possível, fortalece a vontade. Oferecer nossa inteligência aos questionamentos e observação do mundo que nos rodeia, permite arquivos cada vez mais abrangentes. Mundo, inteligência e memória, se unem para oferecer à vontade o que de melhor ela pode ser. Dando opções de enfrentamento para os problemas, ao invés de inclinações para a fuga e suas consequentes perdas de saúde. E você, o que tem feito com a sua vontade?

Todas as citações foram retiradas de “A natureza da psique” (OC 8/2), de Carl Gustav Jung.