Duas colheres de arroz
Um texto sobre a instalação do ser humano na realidade.
AUTOCONHECIMENTO
por Thales Augusto
5/23/202513 min read


“A consciência é algo semelhante à percepção e, como esta, também está sujeita a condições limitantes.” (Jung)
Na minha adolescência, me deparei com alguns textos orientais e por algum motivo eles me atraíram muito. Não por ser algo em si fantástico ou por revelar alguma verdade oculta. Mas estranhamente aqueles contos misteriosos e muito mais poéticos do que qualquer outra coisa me encantavam. Não sabia explicar o motivo e verdadeiramente não entendia o propósito daqueles textos, mas por horas lia e passava o restante do dia lembrando deles, estas memórias que eram involuntárias e agradáveis.
Alguns anos assim se passaram e em algum estudo que fiz sobre sonhos, o qual não me recordo de quem era o autor, haviam algumas técnicas sobre indução de sono e de sonhos. Uma delas era justamente a leitura e repetição de frases orientais e o autor alegava que elas foram criadas para justamente não conter respostas. A ideia seria oferecer essas frases à mente inquieta, que na sucessiva tentativa de fornecer alguma resposta, de certo modo cansava-se da tentativa de sempre emitir algum pensamento involuntário. Para relaxar e dormir, esta técnica funcionou em mim o tanto que poderia funcionar na minha mente de macaco. Mas pensar sobre uma frase, um conto e um trecho poético como algo sendo criado com um propósito puramente reflexivo, no sentido de procurar respostas, e não de transmitir a resposta em si (uma informação), foi algo novo para mim. Isto me fez retornar aos textos orientais com muito mais afinco, procurando efetivamente entender o que aquilo queria dizer e quais seriam essas reflexões ocultadas em sua intenção.
Acontece que anos se passaram e isso foi tudo. Textos e contos muito estranhos, mas que continuavam a me encantar, exercendo força atrativa, repetição e sensações agradáveis. Até que subitamente, refletindo sobre a vida enquanto aguardava o atendimento de alguma coisa em algum lugar (sim pessoas, usar sua cabeça para pensar enquanto espera algo acontecer ao invés de usar o smartphone é algo que existe), por algum motivo, na sequência desses pensamentos, me veio um desses contos. De repente, minhas pupilas dilataram, provavelmente abri a boca, deixando minha cara de bobo ainda mais boba, e várias informações independentes que se formaram ao longo de vários anos se conectaram em minha mente em menos de um segundo.
O conto é muito simples. Um homem que havia se instalado em uma caverna, no Japão ou na China antiga, e lá passava seus dias a desenhar círculos (enso) nas paredes da caverna. Práticas como estas eram comuns nessas regiões. São práticas religiosas onde a pessoa busca a iluminação (satori) e toda comunidade ao redor apoiam a pessoa, fornecendo roupas, alimentos e todo sossego que precisa para sua busca. Acontece que o tempo passou e, de repente, esse homem tornou-se iluminado. Saiu da caverna em trapos, extremamente magro e com barba e cabelos totalmente longos e desgrenhados. Havia se tornado um mestre taoísta e várias pessoas viajavam de todo o país apenas para vê-lo e pedir orientação. Não mais ficava dentro da caverna, mas sim do lado de fora sob o sol a meditar e a orientar.
Alguns indivíduos, dois se não me engano, ficaram extremamente surpresos como alguém poderia se tornar iluminado apenas por frequentar ou morar na caverna que ficava logo ali ao lado deles, nos arredores da vila. Então aproveitaram um momento que o mestre havia se desviado da entrada e entraram na caverna. Lá avistaram dezenas e centenas de círculos desenhados nas paredes. Desejando obter também a iluminação para si, passaram a desenhar círculos nas paredes todos os dias, buscando aquilo que sabiam que significava aquela prática: desenhar o círculo perfeito e, por isso, obter a iluminação.
Bom, esses dois não obtiveram o mesmo êxito e a história meio que acaba por aqui. A julgar por tantas outras histórias orientais, seria possível haver uma segunda parte para este conto, afinal todas essas histórias orientais seguem um mesmo percurso. Seria da frustração e indignação desses dois homens de não só não conseguirem desenhar o círculo perfeito, bem como cada vez mais desenharem um círculo totalmente falhado. De se questionarem o que afinal de contas é esse maldito círculo perfeito e de chegarem a conclusões elevadas, como: o círculo ser a expressão da alma de quem desenha; ou a busca de executar o círculo perfeito ser o ato de iluminação em si. Mas frustrados e indignados, sairiam da caverna a inquirir, quase que com um ódio invejoso e assassino, ao mestre taoísta, budista, ou zen. Fariam a pergunta de modo direto e simples: "Mestre, como posso fazer um círculo perfeito?" E o mestre responderia, com sua postura desapegada, sábia e serena, algo mais ou menos a esta maneira: "Há duas colheres de arroz dentro da tigela." Aí sim a história terminaria.
Anos se passaram e hoje, como um simbologista, é extremamente prazeroso ver em cada linha o tanto que cada elementozinho desses é carregado de símbolos. É de fato um prazer e uma alegria, que vão além daquela sensação agradável de antes, mas sem excluí-la. É como se o universo inteiro se abrisse para você diante de uma mera folha de papel.
Mas, excluindo os elementos simbólicos carregados nesses textos, o que de fato se abriu para mim naquele dia à sala de espera? É justamente a definição de "círculo perfeito". Ora, mas que cargas d'água seria a porcaria de um círculo perfeito? Como pode alguém simplesmente ficar desenhando uma besteira dessas na parede, deixando de lado sua própria vida, sendo sustentados por outros que acreditam em algo que nem sabem o que é e, pra piorar, de repente, você se torna mestre em alguma coisa? Ou mais simples ainda, o que porcaria é para alguém um desenho do círculo perfeito na parede de uma caverna?
Já que falei da minha adolescência, para os professores de física e matemática daquela época, círculo perfeito seria algo perfeitamente simétrico. Lembro-me de alguns professores, que era quase um evento vê-lo pegar o giz (sim pessoal, o ensino acontecia com pessoas querendo ensinar e não lendo algum powerpoint fajuto), assumir uma postura quase que de um espadachim, mirar bem no quadro negro, apoiar o giz com vigor e em um movimento gracioso, fazer um círculo todo redondinho. No intervalo das aulas, alguns alunos se divertiam uns com os outros, valendo-se de um giz roubado enquanto olhavam pela fresta da porta antes do próximo professor chegar, só para ver quem mais perto chegava daquele "círculo perfeito" do professor no quadro negro.
Outros professores eram mais engenhosos. Possuiam barbante, uma grande régua de madeira e só usavam o quadro negro gradeado. Com essas ferramentas em mãos, realizavam medidas, desenhavam um quarto de círculo por vez e, ao final, aparavam as arestas e apagavam as marcações. Obtiam o "círculo perfeito". Para estes, durante a troca de turnos, os alunos se divertiam tentando olhar, rosto colado ao quadro negro (e roupas denunciando a ação, cheias de pó de giz) se de fato um círculo de algum professor era mais perfeito do que o do outro. Claro, tudo sem deixar de olhar a fresta da porta, para não serem pegos durante a troca de turno. Debatiam calorosamente qual era melhor; qual era mais perfeito; se era mais louvável ter a habilidade de fazer um círculo sem ajuda, ou se um círculo perfeito era um círculo perfeito; se algum dos círculos saiu do enquadre; se tinham as mesmas distâncias do ponto central; se o ângulo em suas extremidades era de fato circular ou levemente oval. Chegavam até a usar um esquadro e transferidor para terem certeza de suas análises. Pensando bem, acho que eu vivi presencialmente a discussão religiosa oriental de um verdadeiro mestre budista bem diante dos meus olhos.
O que acontece, por outro lado, é que para nós, alunos e professores, aquilo era a busca do círculo perfeito. Se levarmos em consideração parte da própria formação profissional daqueles professores, a ciência da geometria, aqueles círculos não tinham nada de perfeito. Pois para ser um círculo, em qualquer lugar do mundo e em qualquer época, o que inclui os círculos da caverna daquele mestre iluminado, o círculo deveria ser (leia bem, ser e não ter) πr² e 2πr. Eu não sei vocês, mas isto aqui não me parece nada com um círculo. E ainda assim, se voltarmos à escolinha, sairmos da turma daqueles que chamam os professores de professores e irmos para a turma que os chamam de tia e tio, temos um monte de criancinhas desenhando círculos o tempo todo. Se você olhar bem para os desenhos, verá um monte de figuras extravagantes: círculos que não se fecham; círculos mais ovais do que circulares; todos os tipos de cores; às vezes até um quadrado ou uma casinha (e ainda assim é um círculo); rabiscos intermináveis que, talvez, lá no meio deles, algum deve ser mesmo algum círculo. E mesmo neste caos, todas elas irão apresentar com alegria firmeza, ainda assim despretensiosos de sua opinião sobre o que é um círculo, o seus desenhos de um verdadeiro círculo: um círculo perfeito.
Acho que vocês já devem estar entendendo onde eu quero chegar. E a resposta é: não, não é isso. O "círculo perfeito", ou o conceito daquilo que é perfeito, não é algo simplesmente da nossa cabeça, ou que pode ser o que a gente quiser, ou meramente depende das circunstâncias. Afinal de contas, se você coloca quadrados nos eixos dos carros, você tem um conjunto de porcarias e não rodas que te auxiliam vir daqui até ali. Se você trocar a pia de sua casa por uma cuba quadrada, você tem só mais um trouxa acreditando na ilusão das redes sociais e uma faxineira furiosa, não um lugar adequado para se higienizar. Você não teria milênios de intelectuais comparando formas no mundo e conseguindo estabelecer um paralelo entre elas, traduzindo um círculo em πr² e 2πr. Pois bem, a verdade não é relativa e a perfeição também não. Mas se você embarcou comigo nessa história toda até aqui, o fez pois sua cabeça é capaz de pensar isso tudo. Se você e eu temos essa capacidade, certamente aqueles dois homens procurando a iluminação também a tem. Certamente, o mestre taoista, que alcançou a iluminação, assim também o tem.
O estalo que me veio à mente, que conectou estas ideias que lhe apresentei e algumas centenas mais, é de justamente "o que é para alguém um desenho do círculo perfeito na parede de uma caverna?" Ora, definitivamente eu não sou um mestre de nada, muito menos falo em nome das religiões e textos orientais, mas isto não exclui o entendimento que me sobreveio e que, posteriormente, me abriu portas. É de que a iluminação não reside na expressão da alma que se transmuta nos desenhos dos círculos; não é o processo, a arte, de buscar realizar o círculo perfeito; mas sim de justamente de nós estarmos perdidos, presos (caverna), em uma busca ilógica de querer dizer o que é perfeito. De querer dar resposta para tudo e de ter à pronto raciocínio todos os esquemas do universo.
Ora, somos pequenos demais. As crianças apresentadas aqui e os adolescentes se divertindo em competição boba, sem contar também ser frequentemente apresentadas nos textos taoistas a expressão de fazer as coisas "como um bebê recém-nascido", me ajudam a explicar isso. O círculo perfeito é aquele que você faz. É aquele que está na sua frente, aqui e agora. Desprovido de todo este mar de pensamentos sem fim. Vivenciado em sua plenitude com o todo que é, por sua mera presença, fundidos pelo todo o que você é, com toda a sua presença. Pois assim como uma pedra tem mais conhecimento que todos os centros geológicos do planeta, cada coisinha no mundo guarda em si o seu todo. Somos nós em nossa curiosidade que queremos saber mais e nos perdemos no meio do caminho, esquecidos do prazer que é estar unidos com aquele objeto à nossa frente. Como os adolescentes travessos felizes a brincar, e as crianças despreocupadas felizes a desenhar. Depois que saímos desse ponto de contato com o mundo, tentando desesperadamente atribuí-lo ao pouco que conseguimos pensar, nos perdemos nesse lugar escuro chamado mente.
Mais uma vez, advirto, não é uma ode ao relativismo. Nada do que falei até aqui é relativo. Note bem que não é porque eu não afirmei categoricamente que uma coisa tem um significado preciso, que automaticamente disse que ela tem significado algum. O que acontece é justamente que a realidade, inserida em nós e existente em toda nossa volta, ao mesmo tempo, é absurdamente grande demais para caber em nossa capacidade de concepção. Assim sendo, viver em nossa mente na tentativa de apreendê-las, como se fosse possível tê-las por completo, é o centro do entendimento. É o causador da ilusão. E é precisamente por este motivo que os mestres em todos esses textos orientais, ao serem perguntados de algo complexo e transcendente, respondem com algo simples e que está imediatamente à frente dos interlocutores. Como as duas colheres de arroz na tigela, mencionadas. Pois isso é o todo e isso é a perfeição: a vida que está diante de você, aqui e agora.
Como eu disse, foi só depois deste entendimento, talvez uns 10 anos lendo e meditando sobre diversos textos orientais, que portas me foram abertas. Uma delas foi em relação ao real entendimento dos ensinamentos de Musashi (Gorin No Sho), referência cultural japonesa e um autor usado nas bases teóricas dos estudos de administração do ocidente. Por me possibilitar saber que ele não falava de artes marciais ou elementos da natureza, mas do todo da realidade a partir das suas "duas colheres de arroz". E em Jung, verdadeiro mestre da psicologia. Um homem fabulosamente inteligente em que meramente falar de uma comparação comigo é uma dupla humilhação. Para ele, por ter recebido essa desagradável comparação, e para a minha pessoa, tamanho é a distância das minhas parvas capacidades. Por que eu digo isso? Pois apesar de ser ele o meu referencial teórico e ser absurdamente mais inteligente que eu, Jung deixou sua verdadeira identidade marcada nos seus estudos sobre religião realizados poucos anos antes de seu falecimento, ao passo que abandonou seus modos avaliativos enquanto médico.
Um desses estudos religiosos fala justamente do processo de iluminação das religiões orientais, mais especificamente do budismo, taoismo e do zen. Que é o que estamos conversando aqui neste texto. Jung afirma que o ser iluminado vê de modo diferente, pois é um ser diferente que saiu da ilusão das coisas, portanto um ser transcendente. Em outras palavras, as coisas não mudaram e sim seus olhos. Isto é colocado pois Jung parte da negação de alguns outros pensadores sobre estes aspectos, de que o homem transcendente vê a realidade das coisas e, portanto, seriam as coisas à sua volta que haviam mudado. Ou seja, o ser iluminado saiu deste mundo à nossa volta, o transcendeu.
Parece assim que eu concordo com Jung, visto que o mestre iluminado busca a instalação da realidade, portanto nada do mundo mudou: o iluminado não saiu deste mundo, ou das amarras deste mundo. No entanto, e é por isso que preciso reconhecer que entendo a grandeza intelectual de Jung, e não só dele, ao mesmo tempo que não posso deixar de afirmar que esta sua avaliação é errada. Pois para Jung há sim uma mudança de substância. No caso não do mundo que foi perpassado, como bem nega, mas a mudança da substância do homem. Para ele (Jung), o ser iluminado deixou de ser humano e se tornou algo maior. Tecnicamente falando, não mais o eu opera e sim o si-mesmo. E reafirmo que Jung demonstra sua verdadeira identidade nos textos religiosos ao final de sua vida, pois abandona a máscara de médico e afirma categoricamente que podemos ser algo além da própria estrutura psíquica, o que antes para ele seria o todo do ser humano. Sendo que Jung, o médico, sabe muito bem que material psíquico é material psíquico e não uma metafísica (parapsíquico) e/ou algum conceito filosófico.
Assim sendo, infelizmente Jung chega ao ponto de afirmar que as práticas do satori (iluminação) tornam o homem não mais homem, pois saiu dessa condição, e nem sequer Deus, pois havia saído dele. Se torna, por fim, algo maior que Deus. O que, ao meu ver, do ponto de vista metafísico, teológico e filosófico, é uma impossibilidade. Não há como um criador criar algo maior do que ele, bem como não há como criatura ser maior que seu criador. Isto é uma questão de matéria, substância: não há como substanciar algo sem a substância. Assim sendo, não há como o ser que tira de si, conseguir "empilhar material" que seja maior do que aquilo que era ou que tinha.
Por isso mesmo Jung acredita que "as duas colheres de arroz na tigela" para o mestre são diferentes, porque este vê diferente. Em momento algum, infelizmente perdido em sua paixão, Jung se questiona o porquê isto não é, na realidade, o mestre iluminado percebendo que as coisas do mundo são tão maiores que não cabem em nossas aspirações mentais. Assim sendo, a resposta às perguntas transcendentais é olhar para a coisa à sua frente, aqui e agora, exatamente como a presença do seu ser absorve, sem a interferência do seu estado mental consciente. O médico Jung, mestre da psicologia, sabe muito bem tanto a importância do papel da consciência nesta equação, quanto do seu perigo. De tentar usurpar o lugar psicológico de ser, se colocando como o senhor de tudo, tornando o portador da consciência (a pessoa) em um eterno fadigado, visto a força que isto exige, ao mesmo tempo um grande frustrado, dado a impossibilidade de ser senhor de tudo. O que dirá um deus maior que Deus.
De fato, um ser que se instala na realidade transcende as próprias capacidades e por isso é um ser transcendente: utiliza-se de todo o potencial humano que possui, perpassando o próprio vício de controle consciente que a psiquê arrisca. Ser isto, transcendente, iluminado, satori, não é um entendimento do todo, mas a coparticipação do todo.
Bem como o verdadeiro Tao não pode ser nomeado (Lao Tsu), os mestres chamam a atenção para a presença do que há e não à sua elaboração mental. O que dá à insistente tentativa de elaboração mental o caráter ilusório e a instalação no mundo real a verdadeira participação com o Tao (um com o Tao).
Eu, enquanto estudante da psiquê, sigo e aprendo perfeitamente os ensinamentos do médico Jung. Mas jamais posso consumir da mesma ideia de que a psiquê é o todo e o ser humano é capaz de ser um deus. Das duas colheres de arroz ofertadas por Jung, posso apenas consumir uma. Ainda assim, o faço por fome de conhecimento e, ao mesmo tempo, receoso que a porção de arroz não contaminada possa ter encostado na outra.
Todas as citações foram retiradas da obra Psicologia e Religião Oriental (OC 11/5), de Carl Gustav Jung.