Fiquei louco!
Um texto sobre injustiças do cotidiano.
AUTOCONHECIMENTO
7/1/20256 min read


“Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.” (Machado de Assis)
Recentemente passei por algumas reviravoltas em minha vida. Coisas da vida. Mas como alguém que espera o reino de Deus e nada mais, deixei para lá. Não vale a pena brigar por dinheiro, como se fosse a única coisa que existisse, ou vender minha paz para parecer que eu sou tão ou mais esperto que meus compatriotas. Mas o que veio depois foi demais.
Sem entrar na onda das redes sociais e contar para todo mundo os detalhes da minha vida, o ápice da coisa é o que importa para este texto. Basicamente uma reunião de encerramento onde a pessoa do outro lado, importante, dona de empresa, mãe de família e a coisa toda, olhou nos meus olhos, escutou os argumentos, aceitou e assinou embaixo. A coisa se encerrou e três horas depois emitiu uma nota afirmando o exato oposto do que havia acordado em reunião.
Mas a coisa não para aqui. A pessoa em questão é até famosa, tem bastante seguidores e já trabalhou até na TV. Tem alguns bordões e um dos mais famosos tem a ver com dizer que "brasileiro é tudo malandro". Bom, o errado sou eu porque ela, brasileira, avisou antes. Mais um trouxa que saiu de casa no dia certo.
Enquanto isso, passava na própria TV o que estamos vendo atualmente. O mal dos tempos. Guerras, conflitos políticos e tudo o mais. Diriam os mais otimistas: the same old shit, different day. Fato é que uma das coisas que eu me questionava ao ver o jornal era: "esse cara é burro ou é só mau-caráter?" Porque frequentemente no jornal via-se coisas que não tinham relação com a realidade. Mas vê lá, há de se ter boa fé. Ora, dizer sobre os conflitos no oriente-médio, por exemplo, é extremamente complexo. Às vezes a fonte teórica do jornalista é mais para lá do que pra cá, o que faz a análise ser mais enviesada. Até um grupo de terroristas saírem por aí degolando pessoas por diversão e postar nas próprias redes sociais e o jornalista, vendo essas imagens, dizer como tudo isso é lindo.
Ou quando você fica sabendo de mais alguma atrocidade ali na esquina e lembra que o número de assassinatos no país é mais alto do que em muitas guerras. Enquanto isso assiste um debate acalorado na câmara dos deputados se é mais legal cobrar mais imposto de velinhos ou de viciados em jogos de azar.
Ou se você sai pro trabalho e não sabe se é pior ser CLT ou CNPJ. Se é mais legal ter alguém dizendo pra você como tem que trabalhar pros outros ou se é mais lucrativo deixar o dinheiro rodando na mão de algum banqueiro do que fazer qualquer coisa de útil. Enquanto isso, um tribunal por aí diz que contar uma piada racista é mais grave que tráfico de drogas, roubo e até mesmo se você for racista de verdade.
Só que nada disso resolve meu problema com aquela dona lá do início do texto. Fato é que, pensando cá com meus botões sobre essas coisas, lembrei de onde eu estava. Tinha que terminar um trabalho para uma empresa. Seria a organização de alguns procedimentos que eu havia dito anteriormente que iriam dar errado. Fizeram mesmo assim. Adivinha? Deu errado. E quem fez do jeito que apontei que daria errado não foi o cara de fora da empresa, não foi o destino e o seus acasos, não foi aquele funcionário rebelde que só faz coisa errada…foi o dono do projeto. Por que fez? Achou que iria dar certo. E agora está aqui a revisão do caso e cada peça foi posta em seu lugar. E o que vai acontecer? Uma semana fazendo certo. Na outra "ah, isso é frescura". Ali vou eu a revirar tudo de cabeça pra baixo e implorando pro dono do projeto não sabotar a ele mesmo de novo.
Pois é, lembrei-me de Simão de Bacamarte. Alienista (um psiquiatra para facilitar a conversa nos tempos modernos). Estava ele em uma cidadezinha e começou a ver loucura aqui, loucura ali. Internava um na Casa Verde (o hospício da história), depois outro e mais outro. Com o tempo, para encurtar e empobrecer a história, prendeu a cidade toda. Mas aí temos um problema: como é que a cidade toda pode ser doida? Ora, é impossível, evidentemente. É estatisticamente impossível até. Assim sendo, soltou todo mundo e ele mesmo se prendeu na Casa Verde. Porque se não tem como a cidade toda ter ficado doida, então o doido era ele. "Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo."
Pois é, fiquei louco. É impossível que esteja todo mundo errado, não dá. O negócio é ser malandro. Legal mesmo é ser mais um ladrão. O normal é ser displicente consigo mesmo, com sua família e com os outros então nem se fala. Imagina, aqui em Belo Horizonte temos coisas que são boas só aqui: café, pão-de-queijo, feijão tropeiro e seta de carro. Esta daqui é um charmezinho nosso. Se você der seta, na hora alguém acelera o carro para cima de você só para você não passar nem perto da faixa dele. Faz parte da correria e desse jeitinho respeitoso do nosso trânsito local.
Me lembro ainda de Jung. Médico psiquiatra que no início de sua carreira foi apresentar o hospício em que trabalhava para uma outra pessoa. Esta não achou nada de mais. Para ele, aquele lugar só pareceu uma versão em miniatura da cidade deles.
Me lembro ainda que, talvez, este seja um mundo conformado. Afastado de Deus por conta do Seu mistério de Amor. Um espaço à parte, um vale de lágrimas montado pelo império dos homens e que as virtudes se assemelham à ouro: raro e valioso.
Mas não acaba por aqui. A última para te convencer que eu fiquei louco de verdade. E é uma reunião de condomínio. 300 famílias se reúnem em um espaço na cidade. Pagam caro e tentam se organizar para ter um convívio mais harmônico. Recentemente foi convocada uma reunião extraordinária. Cartas formalizadas. Reunião para decidir o melhor horário para a reunião. Horário nobre, local devidamente montado para acomodar os representantes das famílias. A assembleia estava formada. Começa então o discurso: uma moradora com semblante sério; chama a atenção de todos para um assunto de suma importância; apontou como alguns moradores vinham jogando alimento para pássaro em seus quintais; e finalmente o ponto central e problemático; "passarinhos estão voando sob minha casa".
Se você não sabe, caro leitor, os hospícios no Brasil foram substituídos por casas terapêuticas (SRTs). A maioria das pessoas, entretanto, associam a presença de loucos com o CAPES. Bom, eu sabia muito bem que eu não estava nem em um e nem em outro. Nem ao menos na Casa Verde. Assim sendo, me deu um ataque de risos. Uma reclamação séria de que pássaros estão voando por aí seria um discurso típico de CAPES. Como não era, então a possibilidade seria a de um roteiro de comédia. Mas parei de rir. Lembrei-me que piada no Brasil é um crime mais grave que assassinato e por isso fiquei com medo de me verem como cúmplice.
Bom, acreditam em mim agora? Fiquei louco!
De dentro da Casa Verde agora me dou como satisfeito. Andar na rua com respeito; tratar os outros com dignidade; ter ódio de bandido e terrorista; não ser conivente com estes; ter mais valor na vida do que no montante arrecadado. Em um mundo em que confundem identificação sexual com achar que João pode ser Maria, não é de se surpreender que chamem de normal tudo aquilo que vai contra o bem-estar humano. Assim sendo, se o nome das coisas para este mundo perdeu valor, ser chamado de louco não faz a menor diferença.
Todas as citações foram retiradas da obra O Alienista, de Machado de Assis.