O homem contra o mundo
Um texto sobre a percepção humana e a origem dos conflitos psicológicos.
por Thales Augusto


“O homem para com o mundo: o eu individual como comandante de um pequeno exército em luta com o meio ambiente, não raramente uma guerra em duas frentes: na vanguarda a luta pela existência, e na retaguarda, a luta contra a natureza rebelde de seus próprios instintos.” (Jung)
Com esta frase, dá-se a entender uma posição física. Existe o mundo lá fora, que seria fora da própria pessoa em si, e isto só é possível afirmar porque entende-se previamente uma noção de perceber-se. Ninguém tem dúvidas desta percepção e basta conversar com qualquer outra pessoa para notar que os outros também assim operam. Dentro da psicopatologia, entretanto, sabe-se que há situações e pessoas que não, ou ao menos aparentemente não, atuam dessa forma, que seria: perceber que eu sou eu e daqui pra lá (este lugar aqui muito bem ciente, mas sem um ponto físico) são todo o resto. Porém esta exclusão à essa percepção geral tanto não invalidam a própria percepção geral, quanto não serão trabalhadas aqui neste texto.
Pois bem, como dito nesta última frase e diferente do que a citação dá a entender, não se trata de um lugar físico e ao mesmo tempo ninguém que aponta para si tem dúvidas de que “eu sou eu e estou aqui”. No mínimo, referimos ao tempo e ao espaço presente, ocupados por nossos corpos. Mas qualquer um que se refira a alguma memória de si no passado, a alguma promessa de si no futuro, ou alguma situação geral que não depende do espaço físico, também sabe muito bem que “aqui é aqui”, onde “eu sou eu e aqui estou”. Parece redundante falar desta percepção, mas ao mesmo tempo são as coisas mais sutis que nos geram maior dúvida existencial: “a coisa é assim; mas quem disse que é assim?; por quê é assim?; como é assim?; como eu provo que é assim?” Estas dúvidas refletem um conglomerado de questões humanas e também contemporâneas: dúvidas e medos sobre nós mesmos; um desejo ardente e natural de querer saber tudo em todas as suas miudezas (estas humanas); uma crença irredutível, absurda e radical na ciência, onde tudo só pode ser algo se for dito por cientistas; insegurança em si mesmo e de se dar a liberdade de confiar naquilo que a própria pessoa vivencia (estas contemporâneas). Mesmo assim, a coisa é simples: é uma percepção. É real, é comum e não só podemos como temos a obrigação de confiar nela. Imagine os nossos antepassados, por exemplo, longe das comodidades do mundo moderno, inseguros e incertos de colocar na boca aquilo que passava no meio do que hoje chamamos de rio. Certamente morreriam de sede e hoje não estaríamos aqui conversando.
A percepção, portanto, faz parte de todo aparato humano e deve ser usada e confiada. Claro que podemos errar ao confiar em nossa percepção aqui e ali, mas este ato não precisa de um estudo duplo cego para dizer que existe, que é válido e é real.
Então voltamos ao assunto do trecho destacado, agora que validamos a sutileza de perceber o “eu aqui”. Apesar de não se tratar de algo físico, a citação aponta que logo à frente há o mundo que por sua vez é bem físico. Se trata de uma comparação imprópria por se tratar de duas dimensões de naturezas distintas (o eu como natureza psíquica e o mundo de natureza física). No entanto, assim como nós nos percebemos de modo para além do espaço físico ocupado por nosso corpo, a percepção do que vemos das coisas do mundo, do que há para além do “eu aqui”, é uma apreensão psicológica. Não confunda! O mundo físico, concreto e material. Não é psicológico ou só uma criação de nossa mente. Nós não pensamos e logo as coisas passam a existir. Nós, o que inclui a nossa percepção de nós mesmos, e o mundo, somos todos coisas dadas e que independem de todas as nossas qualidades e poderes psicológicos para existirem. Mas, o que apreendemos, percebemos e lemos do mundo, do que de fato ele realmente é, isto sim é uma percepção psicológica e portanto tem natureza psicológica.
Nesta guerra citada por Jung, portanto, temos assim o eu de um lado (que se percebe) e o mundo (percepção do mundo) do outro. Adicionando ao que foi dito acima, de que esta percepção do mundo é psicológica, podemos afirmar que ela é menor que o próprio mundo pois é um produto da capacidade humana. Nós, humanos, que também estamos inseridos no mundo, portanto, igualmente, somos menores que o próprio o mundo. O que poderia ser traduzido pela função: mundo > humano > psiquê humana > percepção do mundo. A habilidade de percepção é um caráter comum aos seres humanos e não só é menor que o mundo, bem como é relativa às capacidades de quem percebe. Justamente por estar limitado tanto ao local donde o eu percebe e a sua capacidade de percepção. Enfatizo, esta sendo relativo à sua (do eu) capacidade global individual. E mesmo o mundo percebido sendo menor e relativo, sua influência é marcante. Aqui é mais um outro ponto sutil, por acometer a todos e o tempo todo, mas que é ignorado. Para efetuar um paralelo com esta afirmação, temos: você não percebe que está respirando o tempo todo, a não ser que esteja com a respiração acometida ou ao se concentrar nela. É um aspecto de caráter sutil. Portanto é possível constatar a ação de percepção do eu quando este está acometido de alguma forma ou quando concentramos nele. Mais correto seria dizer: quando concentramos com ele.
Mas seguindo adiante, qual seria essa influência marcante? É a de que o mundo nos emite um sinal; somos capazes de apreendê-lo de uma certa forma; gera-se aqui uma impressão dessas coisas do mundo; tem-se assim essa tal percepção do mundo de que estamos falando; e aí, o eu de fronte para tal passa a atuar. Esta atuação pode ser mais ou menos escolhida ou racionalizada, bem como uma ação reflexiva ou automática (a coisa do lado de fora acontece e nós simplesmente reagimos). De todo modo há um convite à ação mediante às impressões do mundo, mais este impulso que nos impele. Ambos fazem parte do que chamei de sutil, portanto um conjunto de ações de caráter sutil, e é marcante pois tanto nos parece que o todo do mundo de fato é desta forma e não de outra, quanto todos esses conjuntos de fato nos impele a agir. Claro que temos que considerar possíveis conflitos, bem como o já citado em relação à crença científica: “vou acreditar no que vejo (percebo) ou no que a ciência me fala?” Mas antes de seguir, vale lembrar que o “aqui” e o “de frente” não são locais físicos e sim a percepção do “eu sou eu e estou aqui” (mais a percepção do mundo), como também já mencionadas.
E por que isto é relevante? Muito simples. Pois agimos de acordo com isto e não fugimos disto (novamente o caráter marcante). Pois até o ato de fugir daquilo que nos amedronta do mundo, é um ato que só pode ser acionado em primeiro lugar porque houve esta determinante impositiva do mundo que ocorre nesse plano mundo-homem-psiquê-percepção. Se você entender isto, estará na frente da maioria esmagadora das pessoas que acham que coisas da mente (ou coisas do pensamento) são meras trivialidades pois bastaria apenas pensar diferente e tudo lhe seria resolvido. E ainda assim, essas mesmas pessoas olham para um conjunto enorme de vários tipos de roupas e escolhem apenas algumas; podem escolher uma variedade de alimentos e escolhem apenas um grupo seleto; podem gostar e interagir com todos, mas o fazem apenas com alguns; poderiam responder de imediato, de modo reativo, à alguma situação de tantas formas, mas respondem apenas de uma, duas ou três. E isso tudo sem mencionar aqueles que acreditam que o que há em suas cabeças é a totalidade do mundo. Justamente por acreditarem que o que é percebido é o mundo concreto e não a percepção dele.
Com tais entendimentos, temos a seguinte questão: o mundo é o mesmo; o ser humano, talvez não o mesmo, mas a mesma criatura; e ainda assim, há uma possibilidade infinita e particular de responder ao mundo. Infinita pois de tudo acontece. Particular pois em muitos casos chega a ser única a maneira como cada pessoa se manifesta.
Mas ainda há um ponto a ser analisado. Na frase em questão, citada por Jung, ele já coloca um outro fronte (a retaguarda, na verdade) e vai direto ao instinto. Este caminho final é relativo ao texto de Jung, no qual está incluído a passagem, mas também diz de um conjunto de fatores comuns para todo ser humano. Ora, o mundo nos é comum bem como aquilo que há de mais fundo em nós. Parte desta conclusão, agora colocada por mim e não por Jung, está contida no entendimento sobre o instinto. Mas gostaria aqui de ficar com esse outro lado como um todo, mesmo que de modo breve, para deixar exaltado o que já foi dito aqui sobre a percepção e, principalmente, sobre o papel desse eu (aquele que se percebe aqui) no meio dessas duas coisas. Pois bem, seria justamente aquele conjunto de coisas que nos permite inteligir o mundo lá fora, transformando as aparências deste em material psíquico, além de fornecer ao eu um conjunto já elaborado de respostas, por assim dizer. É mais complexo do que isso, mas se trata da dinâmica psicológica e como esta ocorre frente ao eu. Esse todo, portanto, é o inconsciente.
Assim sendo, alocar o inconsciente, e até mesmo o instinto, como um fronte averso ao eu seria inadequado. O eu está inserido no todo da psique, que é composta na sua maior parte de fatores inconscientes. Por isso esta parte maior é chamada de inconsciente. Assim sendo, é justamente esse todo que executa a habilidade de traduzir o mundo externo e conceder ao eu todos aquelas imagens aqui citadas sobre a percepção do mundo. Ou seja, a percepção é uma habilidade dos compostos do inconsciente, ou o inconsciente é capaz (tem a habilidade de) perceber. Ele executa e fornece ao eu tais imagens. O que faz com que o dado entreposto na citação (ou seja, o eu: mundo-eu-instinto) seja, na realidade, mundo-psiquê. Fazendo com que os elementos eu, inconsciente, percepção e instinto estejam todos dentro da grandeza psique e acontecendo ao mesmo tempo, não como uma simples força oposta.
É óbvio, porém, que Jung não traz tal afirmação desprovida de qualquer base. O que acontece é que tal afirmação acerta de modo geral, mas é imprecisa. Assim o é, em primeiro lugar, por conta da confusão supracitada, daquele acontecimento sutil e marcante: por ser a percepção uma ação do inconsciente, que leva ao eu os materiais já percebidos e mais alguns outros (o que inclui impulsos instintivos); o que dá a impressão desse “eu aqui” estar diante do mundo lá fora (que na realidade é o mundo percebido) e de um outro algo dentro de si (que é impressão que surge com a presença dos demais elementos apresentados pelo inconsciente). E em segundo lugar por conta da natureza deliberativa e executiva do eu: a vontade, a volição.
Pois diante desses materiais postos pelo inconsciente, pode-se o eu optar ou forçar por algumas ações diferentes. Eis aqui o todo do conflito psicológico e a justificativa de parecer o inconsciente (a parte de dentro), ou até o instinto, uma frente de combate contra o indivíduo: o eu quer algo diferente do que o inconsciente quer. Mas enquanto a ação volitiva e contrária do eu é real, o conflito não passa de uma impressão. Pois o eu não intelege, não percebe e não armazena, bem como o inconsciente não voliciona. O inconsciente segue as deliberações do eu, fornecendo-o mais opções de escolhas. Assim sendo, o eu não foge daquilo que lhe é possível escolher e o inconsciente, apesar de ter um impulso de realização, não deixa de ofertar mais possibilidades mediante aos pedidos do eu. Jung sabe muito bem disso, mas para afirmar contra o que ele acha que é a natureza de um santo, mencionado em seu texto da citação, esquece de sua própria teoria dos contrários. Mas isso já é outro assunto.
Todas as citações foram retiradas da obra A Natureza da Psique (OC 8/2), de Carl Gustav Jung.