Um problema de confiança

Imagina vivermos em um mundo onde há pessoas com problemas em suas vidas. Elas vão e vem por aí, sofrem com isso e aquilo. Padecem de doenças, transtornos, incoerência pessoal e uma série de outras coisas a mais. Mas não há o que temer. Surge com o tempo um conjunto de heróis da pátria. Prontos e aptos a ajudar, para o que der e vier.

Heróis como são, contam-nos a história verdadeira das verdades mais absolutas. De um dia, em um passado distante, quase paradisíaco. Onde tudo e todos viviam em perfeita harmonia com o meio ambiente, sem guerras e sem armas. Onde todos davam as mãos e cantavam juntos a tão bela canção Aquarius. Era tudo muito mágico, onde todos podiam ser o que quiserem e tinham seus corpos nús, livres a se expressarem com o que mais alto, eles dizem, há de saúde mental: o sexo.

Contam ainda, com grande agravo, do mal que surgiu de repente. Homens malfeitores, mau cheirosos e sujos. Moralizantes, cobertos de cima abaixo com ouro. Antes gordos e barbudos, de pele e cabelos lisos, com olhos azuis. Eles vieram em seus cavalos e navios. Inventaram o dinheiro, instalaram um regime opressor e tiveram a audácia de dizer que existe um Deus apenas e que todos eram obrigados a cobrirem suas vergonhas, em um ato totalmente moralista e autoritário. Ah esses homens moralistas!

Mas graças às sete luas, alinhadas com o deus sol e os anéis de saturno, vieram nossos heróis para nos ajudar! Estenderam-nos a mão, tiraram o nosso tão malvado dinheiro, desfizeram-nos das opressoras amarras de nossos pais, filhos, esposas e maridos. Nos trouxeram de volta a liberdade das drogas, o prazer implacável do sexo livre e a jubilosa oportunidade de sermos tudo o que quisermos, até mesmo um golfinho, se assim o desejarmos!

De lá para cá tudo mudou. Na TV não há mais guerras. Em nossas casas vivemos com harmonia. A natureza nunca esteve tão intacta em toda história humana. Podemos falar tudo o que quisermos sem o risco de sermos moralizados. Temos abundância de bens e não há o que temer quando sairmos às ruas.

E o principal disso tudo: o famoso homem mau e opressor foi derrubado! Enquanto sofríamos, desamparados e com vergonha de nossas próprias mazelas, os nossos heróis observavam a ascensão de figuras como as dos coachs. Foram lá nossos heróis e com toda empáfia e munidos de todo o nosso dinheiro, derrubaram esses cafajestes.

O mal nunca dorme. Então vieram daí os pastores e seus ministérios da família para nos oprimir. Foram lá nossos heróis em sua cruzada da igualdade e, democraticamente, expurgaram esse mal de todas as esquinas do povo brasileiro.

O mal não descansa. Então vieram as casas terapêuticas com a audácia de receber pessoas carentes! E lá foram nossos heróis. Bravos e combativos. Diplomados com as mais altas castas dos Castelos de Cartas. Com uma carteirada apenas, com aparato estatal como adorno, e bum! Lá se vão implodidos cada tijolo de assistencialismo barato.

Como é bom viver sob o jugo de nossos heróis.

Hoje se apresentaram nos palcos da justiça. Erguidos pelos mais altos, loiros, ricos, e gordos de olhos azuis: os líderes políticos. Aplaudidos de pé por mais de 3 unidades de jornais dominantes, totalmente imparciais e democráticos, que apresentaram em suas manchetes: O Povo Brasileiro Aplaude de Pé a Festa da Democracia Com Os Nossos Heróis!

Foi uma festa linda. Não que eu estava lá, eu vi em uma foto. Até mesmo um amigo meu, que disse que conhece o filho da vizinha que estudou com um menino que é sobrinho do genro do diretor acadêmico de algum diretório que foi convidado de última hora para estar presente, me contou.

Mas enfim, o mal não dorme. O mal não descansa. Hoje mesmo nosso grupo de heróis observa perplexo o número de profissionais da saúde sob sua direção. Centenas e centenas dos mesmos, coitados, sem trabalho e sem dinheiro. Que recebem um ou dois pacientes que, não sei porquê, não duram mais do que três sessões e vão embora.

Com toda a certeza, existe um mal por aí. Pronto para instalar na cabeça das pessoas um chip que vai mudar toda a neuroprogramação do povo. Onde um seu João da vida, prefere um Zé Ninguém sem estudos, pagando dez vezes mais caro do que pagaria à um profissional devidamente formado. Nossos heróis sabem bem que o problema está nos outros. E que por isso precisam caçar esses fantasmas, enquanto captam nosso malvado dinheiro para sustentar suas cruzadas.

Enquanto nós, burros, meros mortais, carentes de todo tipo de ajuda, vamos ficar aqui. Às favas nosso sofrimento mental, nossos heróis sabem bem o que precisamos. E é por isso que confiamos tanto neles e não nos outros.